Cereais de inverno ganham espaço na alimentação de bovinos

Débora Damasceno
Débora Damasceno

Pesquisas da Embrapa com cereais de inverno, como o trigo, triticale, aveia e cevada têm consolidado o uso dessas plantas na alimentação de bovinos na Região Sul do Brasil. Seja para suprir a escassez de forragens ou como alternativa ao uso do milho, o fato é que os cereais de inverno estão se destacando como opções sustentáveis e rentáveis para a alimentação animal. Paralelamente, um estudo recente mostra que, assim como o melhoramento genético, a alimentação do gado está diretamente relacionada à qualidade da carne. E é nesse cenário que os cereais de inverno começam a ganhar espaço no mercado de proteína animal.

O tema “qualidade e segurança do alimento” foi eleito como o quinto mais relevante na “Pesquisa sobre as Prioridades da Pecuária de Corte Brasileira”, no recorte da Região Sul do Brasil, que entrevistou 735 participantes de 193 municípios em 2021. Costela, maminha, picanha, fraldinha, alcatra, coxão mole, coxão duro, filé-mignon e patinho; os cortes são variados, sem contar as vísceras que também agradam muita gente. Mas por trás do produto exposto para a venda nas gôndolas dos supermercados e açougues estão cada dia mais intrínsecos temas como origem da carne e bem-estar do animal, ou seja, como esse bovino nasceu, foi criado e abatido. Já é cientificamente comprovado que a qualidade da carne está diretamente relacionada a como se deu cada um desses fatores.

É no campo que quase tudo acontece, com a alimentação do animal cumprindo papel determinante nesse processo. “Além da genética, o sistema de criação e terminação do animal interfere diretamente nas características da carne. Entre um extremo, de produção somente com pastagens, até o outro extremo, de confinamento total, com alimentação por grãos, há a formação de produtos totalmente diferentes”, explica a pesquisadora Élen Nalério, da Embrapa Pecuária Sul (RS). Essa diferença se dá não apenas no tipo de gordura formada, mas, consequentemente, no sabor e aroma dessa carne. “Os bovinos são animais naturalmente prontos para fazer a digestão de fibras, de pasto. Para fazer a digestão de grãos, eles precisam passar por uma adaptação. Essa variação de alimentação faz com que sejam formadas gorduras totalmente diferentes, e isso interfere também no sabor e aroma do produto”, ressalta a pesquisadora.

 

Enquanto a carne produzida nos campos tem uma cor viva e gordura mais amarelada, a de confinamento é mais pálida e possui gordura mais branca. Conforme Élen, o pasto tem carotenoides, que conferem a cor amarela à gordura. Já a cor da carne sofre influência de maior ou menor presença das mioglobinas. “O animal no pasto caminha mais, e precisa oxigenar a musculatura, o que aumenta o teor de mioglobina e origina a cor vermelho mais intenso na carne”, explica ela.

Nos campos Sul-brasileiros, a alimentação dos animais é composta em sua maior parte pela rica variedade dos campos naturais e dietas baseadas em forragens, que dão origem a um produto com perfil de gordura mais saudável. Quando os ruminantes são alimentados com dietas baseadas em forragens, fornecem carnes com maior teor de ácidos graxos do tipo ômega 3. Paralelo a isso, animais terminados com dietas mais intensivas, com alta composição de grãos, renderão carnes com maior teor de ômega 6.

“Uma das biofábricas mais sustentáveis do mundo certamente está presente no estômago dos ruminantes. O rúmen, através da ação de microrganismos, é capaz de transformar a celulose das gramíneas em proteína animal de alta qualidade para alimentação humana”, avalia o engenheiro agrônomo da Embrapa Trigo (RS), Giovani Faé, destacando que manejo adequado das pastagens também pode representar sustentabilidade do planeta: “Pesquisas da Embrapa mostraram que um bom manejo de pastagens pode representar um equivalente em crédito de carbono ao plantio de 6,27 árvores de eucalipto, anualmente, por animal”.

 

Oferta de alimento de qualidade no campo

A maior parte da Região Sul do Brasil é privilegiada pelo ambiente favorável para duas colheitas anuais de grãos, mas também existem períodos de déficit hídrico, frio e excesso de umidade, que dificultam o manejo e implicam em sazonalidade produtiva das pastagens.

A escassez de forragens no campo é marcada por duas épocas desafiadoras para o pecuarista Sul-brasileiro: o vazio forrageiro outonal (março a maio) e o vazio forrageiro primaveril (setembro a novembro). A sazonalidade produtiva das pastagens está associada tanto às condições climáticas, quanto ao ciclo de crescimento das espécies forrageiras. Em geral, a maioria das pastagens disponíveis na Região Sul é composta por espécies de crescimento na estação quente, quando florescem, frutificam e maturam, chegando ao final do verão com estrutura fibrosa, plantas com mais colmos do que folhas, que perdem drasticamente o valor nutritivo.

O planejamento forrageiro é uma estratégia para reduzir a escassez de alimento dos rebanhos ao longo do ano a partir da oferta diversificada de pasto e forragens conservadas. A Embrapa disponibiliza cultivares de gramíneas e leguminosas forrageiras, tanto de inverno como de verão, anuais e perenes, com picos de produção em diferentes épocas do ano que, associadas a práticas de manejo, podem fornecer alimento de alto valor nutritivo em sistema de integração lavoura-pecuária (ILP).

 

Parte relevante do planejamento forrageiro deve-se especialmente aos cereais de inverno, como o trigo, o centeio, triticale e a aveia, além do azevém, que têm o papel crucial de prover alimento no outono e no inverno no Sul do Brasil, importante para a sustentabilidade pecuária quando da escassez de pastagens naturais, ou mesmo as cultivadas. “Existe uma grande ociosidade de áreas no inverno que podem ser manejadas para produzir altos volumes de forragens. Com o avanço da soja em detrimento da pecuária, o gado acaba confinado a espaços cada vez mais restritivos e depende da suplementação no cocho. Esse alimento pode ser produzido no inverno e armazenado, a partir de feno, silagens, grãos secos ou mesmo palha para suprir demanda em períodos adversos ou para sistemas de produção intensivos”, explica o pesquisador da Embrapa Trigo Renato Fontaneli.

Outra alternativa para melhorar a nutrição especialmente nos períodos de vazio forrageiro é o Pasto sobre Pasto, técnica baseada no aumento da diversidade de plantas forrageiras de ciclos de produção diferentes, mas com características que se complementam. O sistema tem como princípio uma integração funcional, tanto em relação às espécies forrageiras diferentes, como em sistemas integrados com lavouras, com ganhos em ambos os casos.

Segundo a pesquisadora da Embrapa Pecuária Sul Márcia Silveira, a lógica do Pasto sobre Pasto está em mesclar plantas forrageiras na mesma área, iniciando um novo ciclo de crescimento do pasto sobre outro ciclo, sem remover as diferentes forrageiras em produção. Com isso, é possível ter maior estabilidade na oferta de forragem ao longo do ano, principalmente nos períodos de transição entre as estações frias e quentes do ano, quando ocorrem os conhecidos vazios forrageiros. Para tanto são usadas diferentes espécies forrageiras de gramíneas, de inverno e verão, e leguminosas no sistema, buscando a estabilidade e o aumento de oferta de alimento para os animais. Entre as espécies que estão sendo testadas nessas mesclas, por exemplo, a aveia entra como uma alternativa importante nos desenhos de sistemas de produção.

Outro foco das pesquisas da Embrapa está voltado à avaliação nutricional dos cereais de inverno para compor a dieta dos animais frente a escassez de milho no mercado.  “É possível substituir parte do milho, seja em grãos ou volumoso, na alimentação dos bovinos sem comprometer o ganho de peso”, explica o engenheiro agrônomo da Embrapa Trigo, Marcelo Klein.

Confira o comparativo de valor nutricional das forragens de cereais de inverno* com a silagem de milho:

 

 

Qualidade no Angus

O gado da raça Angus forma rebanhos por todo o País, com a qualidade da carne reconhecida pelo consumidor por oferecer cortes de alta suculência, sabor diferenciado e gordura na medida certa.

Na Cooperaliança, com sede em Guarapuava, PR, 177 cooperados trabalham com cria, recria, engorda e terminação de Angus. No frigorífico da cooperativa são 30 mil cabeças abatidas por ano. A avaliação de cereais de inverno para forrageamento dos animais começou há cinco anos, com análises a campo e em laboratório de culturas como trigo, aveia, centeio, cevada e triticale. “Com o avanço da soja e do milho sobre a pecuária vimos a necessidade de aprimorar a alimentação do gado, que fica até oito meses nas propriedades dos cooperados em recria e terminação”, conta o engenheiro agrônomo da Cooperaliança, Rodolfo Carletto. Segundo ele, o volumoso servido no cocho era baseado na silagem de milho, mas a entrada prematura da suplementação com grãos e o excesso de carboidratos (amido) acabava achatando a curva de crescimento dos animais: “Verificamos que as vísceras estavam ficando comprometidas. Até 50% do fígado acabava descartado por lesões”. O problema, conforme Rodolfo, foi significativamente reduzido com o uso de cereais de inverno que apresentam maior teor de proteínas (11%) e menor teor de carboidratos (30% de amido) do que o milho, que apresentou 7% de proteínas, 35% de amido na silagem e 75% de amido nos grãos.

 

Cevada como alternativa

A zootecnista Maryon Carbonare trabalha com forragem conservada há mais de dez anos, prestando consultoria na região dos campos gerais do Paraná. Uma das propriedades acompanhadas por ela na MS DC Consultoria em Ponta Grossa, PR, enfrentou a falta de milho para alimentar o rebanho de 400 animais, das raças Angus e Canchim, em sistema de cria e recria. “Acabou a silagem de milho e orientamos o produtor a colher os 32 hectares de cevada cervejeira que estava destinada a colheita de grãos. Fizemos silagem de cevada de planta inteira que abasteceu o plantel durante quatro meses, mantendo o ganho de peso e a taxa de reprodução”, conta ela.

Enquanto a média de rendimento de massa verde na aveia foi de 20 toneladas por hectare, a cevada produziu 35 toneladas de massa verde (ou 12 toneladas de massa seca). Contudo, quando comparada à silagem de milho, os custos de produção quase dobraram: R$ 0,55 kg/MS no milho e R$ 1,00 kg/MS na cevada. “Mesmo com custos mais altos, não podemos ficar dependentes somente do milho. Podemos produzir volumosos energéticos também no inverno”, conta Maryon, que também fomenta o uso de cereais como triticale, trigo e aveia na produção de forragem conservada.

 

Wagyu – a carne mais cara do mundo

O preço da carne de Wagyu pode ultrapassar R$ 1.000,00/kg. O diferencial segundo os especialistas está no marmoreio, gordura entremeada na carne que derrete durante o preparo resultando num sabor comparável à experiência de um “chocolate suíço derretendo na boca”.

A raça japonesa chegou ao Brasil em 1992 e hoje conta com um rebanho próximo a nove mil cabeças de Red Wagyu e Black Wagyu. No norte do Rio Grande do Sul, no município de Paim Filho, os médicos veterinários Ricardo e Eraldo Zanella começaram a criação de Wagyu há 20 anos. Hoje, a Agropecuária Zanella conta com um plantel de 100 cabeças de animais puros das raças Wagyu, destinados à produção e comercialização de genética, com criação nos estados do RS, SC, PR, SP e MG.

“O sêmen do Wagyu está sendo muito utilizado no cruzamento industrial, principalmente com outras raças como é o caso do Angus, Hereford e Nelore, visando à produção de carnes nobres, principalmente por aumentar o grau de marmoreio da carne. Assim, estima-se que o cruzamento com outras raças ultrapasse 25 mil animais no Brasil”, conta Ricardo Zanella, que também é membro da Diretoria da Associação Brasileira dos Criadores de Bovinos das Raças Wagyu.

 

Na Agropecuária Zanella, os animais são selecionados por avaliações genéticas criteriosas, e os que passam no processo de seleção vão para um sistema de criação extensivo, onde ficam dois anos no pasto e depois são encaminhados ao confinamento em São Paulo, onde passam da engorda à terminação até alcançar 750 kg de peso vivo no ciclo completo de 36 meses.

A pastagem sempre contou com campo nativo, aveia, azevém, sorgo e capim sudão, além de silagem de triticale. A primeira experiência com trigo na forragem foi em 2021, quando a parceria com a Embrapa Trigo levou até o produtor sementes das cultivares BRS Tarumã, BRS Tarumaxi e BRS Pastoreio.

Os animais entraram na pastagem de trigo com 25 a 30 cm de altura e saíram quando as plantas atingiam de 5 a 10 cm. O início do pastejo começou no final de junho e se estendeu até o início de outubro. A carga animal foi de 700 kg/ha de peso vivo (entre quatro e cinco cabeças). O método de pastejo foi o rotacionado ou intermitente, mantendo os animais de três a sete dias em cada piquete, retornando após 15 a 25 dias. Após cada saída, foi realizada a adução com ureia (70 kg/ha) para estimular o rebrote das plantas.

No resultado final, a produção de matéria seca com pastagem de trigo ultrapassou 6000 kg/ha. O ganho de peso vivo chegou a 1,76 kg/novilho/dia em média, com alguns ganhando até 2,1 kg/dia. Em comparação, nos animais que ficaram somente na pastagem de aveia o ganho de peso foi de 1,0 kg/dia.

Em 100 dias no pasto, o gado saiu com 392 kg/animal. “Os bovinos dobraram de peso em pouco mais de três meses na pastagem de trigo. A meta agora é chegar a 460 kg/animal nos dois anos de cria e terminação, ou seja, manter o ganho sem perder o bem-estar animal”, avalia Ricardo Zanella.

(Fonte e fotos: Embrapa)

(Débora Damasceno/Sou Agro)

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