Foto: reprodução vídeo AEN

Alambiques sustentáveis e cana diferenciada impulsionam produção de cachaças no PR

Débora Damasceno
Débora Damasceno

Dos primeiros alambiques às margens do Rio Nhundiaquara no século XVIII à produção atual das cachaças nobres com a cana-de-açúcar da mais alta qualidade plantada ao pé da Serra do Mar, Morretes, no Litoral do Paraná, preserva uma ligação íntima com a produção da bebida que se confunde com a sua própria história. Uma tradição tão forte que virou até verbete de dicionário: ‘morretiana’, nos dicionários Houaiss e Aurélio, é sinônimo de cachaça.

Esta relação foi reforçada no início de dezembro, quando o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) reconheceu a aguardente de cana e a cachaça de Morretes como o 13º produto com Indicação Geográfica (IG) do Paraná. A bebida é um dos produtos tradicionais paranaenses com IG e que estão sendo abordados na nova série de reportagens da Agência Estadual de Notícias (AEN).

 

A certificação contempla três cachaçarias da região que se comprometem a produzir a cachaça em alambiques, abrindo mão do processo industrial em grande escala, e seguindo parâmetros rígidos de rastreabilidade do produto. O modelo preserva as características que fizeram da bebida produzida em Morretes uma referência nacional.

“Existem dois tipos de cachaça. A cachaça industrial e a cachaça de alambique, que é a que nós produzimos aqui em Morretes. Além deste processo mais cuidadoso, nós também temos um terroir único aqui no Litoral, estamos praticamente no nível do mar, na encosta da serra, com um solo especial, então isso também resulta em uma cana especial”, explicou o presidente da Associação dos Produtores de Cachaça de Morretes (Apocam) e proprietário da cachaça Ouro de Morretes, Sadi Poletto.

Estas condições, inclusive, que deram início à tradição caiçara na produção de aguardentes de cana e cachaças. A história começa ainda no Brasil Império, quando Dom Pedro II determinou a abertura de engenhos centrais em algumas cidades do País. No Paraná, Morretes foi a escolhida pelo potencial na produção de cana-de-açúcar local.

“É uma cana que tem uma produção menor por hectare, que também dá menos caldo, mas que tem um teor de açúcar muito alto, o que é ideal para a produção de uma boa cachaça”, disse Poletto.

Dos engenhos surgiram os primeiros alambiques, que se multiplicaram com o tempo e com o sucesso da bebida. No auge da produção local, nos anos 1950, Morretes chegou a ter mais de 60 alambiques.

Por conta de políticas econômicas nacionais, a produção brasileira das décadas seguintes acabou se concentrando em Minas Gerais e São Paulo, mas a tradição paranaense vem sendo resgatada nos últimos anos, com uma produção menor, mas que mira um público mais exigente.

“Assim como aconteceu com a cerveja e com o vinho, que criou-se uma cultura de consumo de bebidas de maior qualidade, estamos trabalhando agora com um público que aprecia uma cachaça premium”, disse o presidente da Apocam.

PROCESSO

Para fazer uma bebida de qualidade, a cachaça segue um processo de produção cuidadoso em todas as etapas. As bebidas que têm o selo da Indicação Geográfica usam somente o produto plantado em Morretes e região, que é de uma variação batizada como ‘havaianinha’, que resulta em uma bebida ligeiramente mais suave do que as cachaças de outras regiões.

A cana é cortada e colhida manualmente. Depois disso, ela é levada até uma área onde é moída. O bagaço é separado para ser queimado e o caldo é extraído, filtrado e reservado para passar por um processo de diluição para que todo o líquido seja homogeneizado a um mesmo percentual de açúcar, a 15%.

“Em geral, dependendo do clima e da maturação da cana, ela pode variar o brix, que é o índice de açúcar do caldo, entre 18% e 20%. Por isso é necessário fazer um processo inicial de diluição com água”, disse a gerente de produção da Agroecológica Marumbi, que faz a cachaça Porto Morretes, Gisele Abreu.

Na sequência, o caldo de cana passa pela fermentação. São pelo menos 24 horas que o líquido passa por grandes recipientes onde uma massa de levedura transforma o açúcar em álcool. “Este é um dos processos mais delicados da produção de cachaça, porque é preciso controlar rigidamente a vazão do líquido e a temperatura do caldo para uma fermentação perfeita”, explicou.

A levedura responsável pela fermentação também demanda cuidados especiais, sendo ‘alimentada’ por cerca de uma semana com quirera de arroz e limão no início da colheita da cana para ficar pronta para o processo de produção da bebida ao longo de toda a safra.

Depois da fermentação, a bebida passa pela destilação no alambique de cobre, onde parte do líquido se evapora a 90ºC, passa por um duto e depois é condensado novamente a cerca de 20ºC.

Neste processo, cerca de 10% de todo o líquido produzido se transforma, efetivamente, em cachaça. “É uma seleção feita por uma análise sensorial. Um profissional experiente que analisa, a cada lote, características como o cheiro e a viscosidade do líquido”, disse Gisele.

Em seguida, no processo final de produção, a bebida é separada para descansar em tonéis de inox ou, para bebidas mais refinadas, em barris de carvalho, onde ficam até 15 anos em processo de envelhecimento.

CACHAÇA
As bebidas que têm o selo da Indicação Geográfica usam somente o produto plantado em Morretes e região. Foto: Roberto Dziura Jr./AEN

 

PRODUÇÃO SUSTENTÁVEL – O modo de produção das cachaças de Morretes que têm direito a usar o selo de Indicação Geográfica é totalmente orgânico, sem uso de defensivos agrícolas para a cultura da cana.

O processo de fabricação da bebida também é feito de maneira sustentável. De acordo com a gerente de produção da Agroecológica Marumbi, a empresa trabalha com o conceito de resíduo zero. “Temos muito cuidado com o meio ambiente. Além de uma produção 100% orgânica, a gente também tem a preocupação de consumir, de alguma forma, todo o resíduo gerado”, afirmou.

Os resíduos do bagaço da cana, por exemplo, são secos e usados como combustível na caldeira onde é gerado o vapor para o processo de destilação. O que sobra é usado para compostagem. O vinhoto da cana, que é o resíduo final do caldo que não é transformado em bebida, também volta para a lavoura para ser usado nos processos de fertirrigação.

A linha de produção também é toda construída em um declive, para que o caldo saia da moagem até o envase usando somente a força da gravidade para passar de um processo ao outro.

“É um processo que quase não usa energia, com o alambique construído passo a passo pensando na evolução da bebida em gravidade. Da moagem à destilação não é preciso usar motor. Além de ser sustentável, ajuda nos custos com energia”, afirmou o proprietário da cachaça Magia da Serra, José Carlos Posses.

CACHAÇA
Mas maior do que o impacto econômico direto da produção da bebida, a cachaça de Morretes ajuda a reforçar a identidade histórica da cidade, especialmente para os turistas que visitam o Litoral. Foto: Roberto Dziura Jr./AEN

IDENTIDADE – De acordo com dados do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (Ipardes) de 2022, Morretes é responsável por 30% da produção estadual de cachaça e aguardente, e segundo o Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), o Paraná é o sexto maior produtor da bebida e o terceiro maior exportador do País.

Mas maior do que o impacto econômico direto da produção da bebida, a cachaça de Morretes ajuda a reforçar a identidade histórica da cidade, especialmente para os turistas que visitam o Litoral.

Para Camila Simas, proprietária do restaurante Empório do Largo, a cachaça é um elemento do cardápio que ajuda na imersão dos turistas que vão à cidade. “Esta é uma cachaça de Mata Atlântica. Quem vem a Morretes quer viver uma experiência de contato com a história e natureza do local. Quando nós servimos aos nossos clientes explicamos toda a história da bebida, essa relação com o meio ambiente e eles entendem o quanto ela faz parte desta atmosfera local”, complementou.

A empresária usa as bebidas com IG na produção de drinques, como uma bebida com maracujá e mel locais, e para flambar uma sobremesa de banana, outra fruta típica da região.

O restaurante fica em um casarão à beira do Rio Nhundiaquara, onde antigamente funcionava um engenho. “Este local foi recuperado para se transformar em um relicário histórico. Uma história que é contada por meio das pilastras originais, da fachada colonial e de outros elementos que remetem à produção centenária da cachaça local”, acrescentou Camila.

(Com AEN)

(Débora Damasceno/Sou Agro)

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