Entenda pontos que levaram federações a pedirem adiamento da Conferência Nacional de Educação
Os pontos críticos foram levantados pelo Relatório Analítico da Associação De Olho no Material Escolar com base no Documento de Referência da CONAE 2024 (elaborado pelo Fórum Nacional de Educação – FNE que irá basear as discussões em todas as etapas e sobre o qual serão propostas emendas a serem deliberadas e votadas nas atividades previstas).
- Distribuição por representações
Ênfase na participação dos “movimentos de afirmação da diversidade”, que têm mais participação do que movimentos voltados à educação e praticamente o dobro de espaço se comparado às comunidades científicas de ensino e pesquisa.
Os denominados “movimentos de afirmação da diversidade”, contam com 96 delegados, todos apontados nacionalmente pelo Ministério da Educação.
Na composição do Fórum Nacional de Educação – FNE quanto na composição de delegados da Conae 2024, há expressa previsão para a participação de “movimentos sociais do campo”. Não há, entretanto, previsão de representação, nem no FNE, nem na Conae 2024, de entidades que representam o setor produtivo da agricultura e pecuária no Brasil.
O FNE é composto por 39 entidades titulares, nomeadas por meio da Portaria n° 1.775, de 1º de setembro de 2023. Nota-se a ausência do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE, autarquia fundamental para a execução e gestão financeira da maioria das políticas públicas educacionais promovidas pelo MEC.
E a pertinência questionável de entidades representantes de movimentos sociais de diversidade sexual e de gênero. (A presença dessa entidade denota ostensivamente as prioridades e as perspectivas do atual governo para a educação nacional).
Há também que se destacar a participação de entidade representante de movimentos sociais do campo, os quais, conforme a Portaria MEC nº 1.775/2023, contam como titular a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – Contag e como suplente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. A lista de participantes do FNE inclui entidade representante dos movimentos sociais afro- brasileiros.
- Postura autoritária expressa no Documento Referência
O Conae 2024 define os parâmetros para o próximo Plano Nacional de Educação – PNE. Sendo uma política de Estado, espera-se que abarque ou, no mínimo, seja tolerante à discussão técnica e científica com os diferentes setores da sociedade.
O texto do documento referência é recheado de adjetivos pejorativos que se dirigem a setores da população, que, aparentemente, não estão contemplados pelas visões dos organizadores da Conae 2024.
O que o documento considera “conservador” é sempre usado de forma hostil. Grupos conservadores são equiparados a fundamentalistas e são tratados como verdadeiros inimigos.
Os organizadores da Conae 2024 não sentem constrangimento em publicar discurso de ódio contra seus oponentes políticos. Estratégia tipicamente autoritária a desumanização de quem não pensa conforme determinada ideologia, a fim de monopolizar o discurso e excluir outras vozes.
O setor produtivo agropecuário não saiu ileso no documento de referência. Os “ruralistas” teriam atacado violentamente a democracia, os direitos humanos e tantos outros valores.
A retórica do Documento é carregada de críticas genéricas aos governos anteriores. É comum na retórica autoritária o revanchismo e a demonização de quem não concorda com suas ideias.
Que “desmontes” de políticas públicas seriam esses? Quais foram as políticas, programas e ações “neoliberais”, “ultraconservadoras” e que expressam o “ideário da extrema-direita”?
Ignoram políticas públicas baseadas em evidências científicas e em experiências bem-sucedidas implementadas na alfabetização, entre os anos de 2019 e 2022. Lançado em 2020, o Tempo de Aprender compreendeu o programa mais completo de alfabetização da história do Brasil.
- Viés ideológico expresso no Documento Referência
Um dos grandes pontos de atenção do Documento Referência é a multidão de referências (mais de 20) às causas dos movimentos do identitarismo sexual e de gênero.
Observe-se como o Documento Referência da Conae 2024 pretende instrumentalizar o Sistema Nacional de Educação – SNE para a promoção de pautas “LGBTQIAPN+” (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, intersexo, assexuais, agênero ou arromânticos, pansexuais e polissexuais, não-binários e demais grupos não mencionadas na sigla) por meio da alteração das orientações curriculares.
O Sistema Nacional de Educação – SNE é uma tecnologia administrativa e de cooperação entre União, Estados, Municípios e Distrito Federal para a melhor coordenação da educação no Brasil. Deveria servir à melhoria da qualidade da educação – como se verá, aspecto negligenciado pelo Documento Referência –, mas agora o risco de captura para a promoção de pautas ideológicas é não apenas provável, como declarado pelo Documento Referência. O documento, inclusive, é claro em não apenas querer ordenar as orientações e diretrizes curriculares para fins ideológicos, mas também a formação dos professores e até o investimento de infraestrutura para a causa “LGBTQIAPN+”.
Outra questão relevante é a postura contrária à iniciativa privada presente ao longo do documento, que acaba por soar como hostilidade.
Uma questão que levanta um risco ideológico relevante é quanto à educação ambiental, presente no Eixo 7 do Documento Referência.
É muito relevante que a educação ambiental considere todos os valores destacados no título do Eixo 7 e que o faça de forma profissional e responsável.
Considerando que o texto do Documento Referência se manifestou contrário e associou o setor produtivo agropecuário ao conceito de “ultraconservador” (vide tópico 266, já mencionado na seção anterior), é muito provável que esse setor produtivo seja retratado como antagônico ao tema ambiental, o que, evidentemente, não corresponderia a uma postura honesta e realista.
O setor produtivo da agropecuária pode e deve colaborar com a construção da educação ambiental, pois correspondem às pessoas que estão, efetivamente, no campo, vivem do campo e conhecem a realidade da produção. A julgar pelo forte teor ideológico do Documento Referência, surge a preocupação sobre o risco de temas como a educação socioambiental ser instrumentalizado nas escolas e universidades para criar narrativas com fins político-partidários, como já ocorre em muitos casos.
- Falta de rigor técnico no Documento Referência
Em geral o texto é longo e prolixo, o que o torna menos acessível, efetivamente restringindo o acesso a suas informações a mais pessoas interessadas em um tema tão fundamental para a sociedade.
A Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001, que instituiu o PNE 2001-2010, trazia em seu corpo uma estrutura sistematizada de diagnóstico de cada etapa ou modalidade de educação, acompanhada de objetivos, diretrizes e metas correspondentes. Desse modo, os agentes políticos da época possuíam, mesmo que de forma rudimentar, um subsídio técnico com relações de causa e efeito e razões claras para justificar o emprego de esforços em cada objetivo e meta. Essas sistematizações das relações lógicas já não são tão evidentes na Lei que instituiu o PNE 2014-2024. O documento “Planejando a Próxima Década Conhecendo as 20 Metas do Plano Nacional de Educação” traz uma síntese de contexto dos temas correspondentes a cada meta e explicações sobre as respectivas estratégias, não constam análises claras e objetivas das relações de causa e efeito de modo sistemático, de forma a ter garantias mínimas de que as ações do plano, em seu conjunto, estão maximizando resultados.
Há uma predominância em todo o documento de um discurso que preza pela chamada “qualidade social”, um conceito que não foi definido propriamente e que apresenta diversas dificuldades para o planejamento efetivo de políticas públicas.
Documento Referência apresenta textos que, em geral, são expositivos, mas não apresentam justificativas claras das escolhas e direcionamentos, como se, por pressuposto, já estivessem justificados. Esse é um grave defeito que compromete a utilidade real do texto.
- Erros a respeito da qualidade na educação no Documento Referência
Qualidade é aprendizagem efetiva no tempo certo das habilidades e conteúdos previstos no currículo. Essa definição é lógica, porque se alinha ao objetivo da educação: uma educação de qualidade é aquela que realiza seus objetivos de forma plena, e o objetivo precípuo da educação é a aprendizagem, acima de todos os outros, que são acessórios. O compromisso com a qualidade deveria estar permeado em toda a discussão da Conae 2024. Entretanto, a qualidade real nunca é abordada no Documento Referência.
O que se encontra nessas proposições é uma tentativa de se instrumentalizar a educação para fins ideológicos, sem verdadeiro compromisso com a qualidade do aprendizado.
A expressão “qualidade social”, usada mais de 30 vezes, pode significar muitas coisas e não é propriamente definida no texto. Não há qualquer referência para saber o que os autores querem dizer por isso. Sem uma definição clara e objetiva, como será possível realizar medidas de modo a monitorar os esforços e avaliar os resultados? Se não há medida objetiva da qualidade da educação em termos de aprendizagem, então qualquer coisa serve, o que é útil politicamente para os detentores do poder. Essa postura sempre deixa a sociedade e a Administração Pública num mundo fictício, discutindo platitudes enquanto as crianças não estão aprendendo, ficando à deriva de sistemas educacionais ineficientes.
A oposição às avaliações também tem a dimensão de oposição às “políticas de estímulo às escolas que melhorarem o desempenho no Ideb, de modo a valorizar o mérito do corpo docente, da direção e da comunidade escolar”, por serem contra a noção de mérito. Em que pese várias redes educacionais no mundo terem alcançado resultados satisfatórios na alfabetização por meio das políticas de incentivo ao mérito.
Ao tratar de metas educacionais baseadas em aferição de desempenho em exames padronizados, ataca constantemente o espantalho de que não se pode considerar “apenas” esses resultados na avaliação da qualidade, desconsiderando as tecnologias de avaliação que já existem hoje no Brasil.
O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – Ideb, que é o principal instrumento de aferição da qualidade da educação das escolas no Brasil hoje, já é uma composição que inclui o desempenho nas provas do Sistema de Avaliação da Educação Básica – Saeb.
O Saeb já traz em si os questionários de análise socioeconômicas que ajudam a contextualizar o desempenho dos estudantes. Ainda, existe o Censo Escolar, em que várias informações são coletadas a respeito das escolas e de sua atuação, o que dá uma dimensão contextual maior às informações obtidas em exames padronizados.
Outro ponto de oposição dos redatores do Documento Referência em relação à avaliação da qualidade real da educação é sua preocupação não em melhorar os indicadores da educação básica e superior em relação à qualidade, mas em relação à “diversidade e à equidade”, o que é impressionante, tendo em vista a falta de qualidade que marca o provimento de educação em muitas partes do Brasil.
Um outro grave problema do documento é a ausência de menção a evidências científicas de forma geral, e completa falta de balizamento em experiências educacionais bem-sucedidas no Brasil ou no exterior. O documento como um todo assume caráter meramente opinativo, sem indicar fontes que demonstrem que suas propostas têm algum fundamento técnico. É, portanto, mais parecido com o estilo de um editorial do que de um subsídio para elaboração de política pública em educação.
A única menção a políticas educacionais de outros países no documento foi quanto ao financiamento da educação, ao mencionar que alguns países tiveram momentos de grande priorização de investimos na educação. Enquanto é louvável reconhecer isso, a menção foi superficial, e não levou em consideração outras políticas educacionais que esses países aplicaram – muitas delas meritocráticas e focadas na avaliação da qualidade da educação. Uma política de mera transferência de recursos para a educação, sem um substrato teórico e técnico forte, é um desperdício de dinheiro que provavelmente não se traduzirá em aumento da qualidade da aprendizagem para as crianças.
O trecho acima é uma crítica à Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica – BNC-Formação, que é bastante ilustrativa de como o Documento Referência trata (ou deixa de tratar) das evidências. A crítica é genérica e em nenhum momento mostra, por exemplo, em que a BNC-Formação apresenta uma visão “negativa dos professores”, ou como desconsiderar o “pensamento educacional brasileiro”. Pelo contrário, é o Documento Referência que expressamente ignora as experiências exitosas de países que conseguiram melhorar sua qualidade da educação de forma objetiva e mensurável.
Uma gestão escolar de qualidade é aquela que permite o funcionamento da escola de tal forma a maximizar a aprendizagem dos estudantes – incluindo aí a questão da alimentação escolar, segurança, bem-estar de todos e processos administrativos.
A eleição direta do diretor escolar pode satisfazer uma necessidade de caráter político, porém não necessariamente será suficiente do ponto de vista técnico.
Nota-se que essa proposta não prevê de forma ostensiva a exigência de que a essa eleição deverá “ser associada a critérios técnicos de mérito e desempenho”, conforme estava na descrição da Meta 19 do atual PNE, o que é muito preocupante. Isso pode deixar margem para uma gestão instrumentalizada por questões políticas em detrimento do rigor técnico e da qualidade.
Em que evidência pode se basear a ideia de que não se deve ter uma prova nacional para o cargo de direção? A ausência dessa prova só pode beneficiar candidatos a diretor que sejam despreparados. Outros países com sucesso em políticas educacionais, pelo contrário, investem em deixar as carreiras de gestão escolar altamente especializadas.
Enfim, vê-se que apesar da presença da expressão “qualidade social”, pouco se realmente discutiu no Documento Referência para a melhoria real da qualidade da educação.