AGRONEGÓCIO
Inteligência Artificial faz “ficção científica” se tornar realidade no meio rural
Um veículo movido à energia solar, abastecido com herbicidas, se move por georreferenciamento aplicando a calda direcionada apenas às ervas daninhas, detectadas automaticamente. Em vez de aplicar inseticidas, a mesma fazenda usa um equipamento com iscas luminosas que atraem e eliminam insetos-praga. Tudo isso sem o produtor mover um dedo. Até pouco tempo atrás, uma cena como essa só poderia ser coisa de imaginação futurista. Mas, em 2024, tudo isso já está não só viável tecnologicamente, como disponível no mercado e gerando lucro nas lavouras. E o segredo para transformar “ficção científica” em realidade está em uma ferramenta que é a sensação do momento: Inteligência Artificial (IA).
“A inovação tecnológica tem ocorrido em uma velocidade impressionante”, aponta Ágide Meneguette, presidente do Sistema FAEP/SENAR-PR. “Temos que responder a toda essa evolução tecnológica nesse mesmo ritmo, para que possamos aumentar a eficiência produtiva, reduzindo custos de produção. Só assim para continuarmos firmes na missão de alimentar o mundo, cuja população segue em ritmo forte de expansão e vai demandar ainda mais produção agropecuária nas próximas décadas”, completa Meneguette.
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Para chegar até o campo, as empresas têm investido cifras bilionárias no desenvolvimento de novos produtos e ferramentas. As grandes organizações envolvidas no agronegócio estão direta ou indiretamente apostando em projetos que envolvem agricultura digital e uso de Inteligência Artificial. Tendência que também tem transbordado para outras áreas da sociedade, com produtos como ChatGPT, Midjourney e dezenas de outros que surgem a cada dia e interferem no dia a dia de todos os setores, incluindo o agronegócio.
“A Inteligência Artificial chegou para virar o jogo. Antes, o produtor até tinha acesso aos dados, mas precisava de um profissional para fazer a análise. Agora, a própria IA, a partir de bancos de dados gigantescos, é capaz de tomar a decisão correta. Essa é a grande chave”, diz Heli Heros Teodoro de Assunção, técnico do Departamento Técnico (Detec) do Sistema FAEP/SENAR-PR.
Para Assunção e para outros especialistas ouvidos na reportagem, a IA representa uma nova fase na revolução digital no campo. Se ao longo da última década as propriedades rurais se acostumaram a ferramentas como drones, pilotos-automáticos e georreferenciamento, agora é possível ter análises em tempo real e, o mais importante, os sistemas definem o que fazer com esses dados na hora.
Lavoura automatizada
Tecnologia que permite a softwares e máquinas serem capazes de imitar a resolução de problemas e tomadas de decisão da mente humana, o uso da Inteligência Artificial, com o passar do tempo, vai se aprimorando e ficando cada vez mais refinado. Um exemplo disso é o que acontece com a empresa Solinftec, que disponibiliza IA em seus produtos e serviços desde 2018.
Tudo começou com uma tecnologia chamada Alice (semelhante a uma Alexa, IA comercializada pela Amazon), na qual o produtor dava comandos de voz e a ferramenta respondia condensando dados sobre o plantio, a previsão do tempo, entre outros. Agora, a IA vai além, automatizando e otimizando o manejo de lavouras, como de cana-de-açúcar e de soja por meio de veículos autônomos movidos a energia solar, capazes até mesmo de pulverizar defensivos agrícolas.
“Com a experiência da Alice, com a análise de milhares de dados, nós resolvemos ir para o caminho da IA e robótica. Hoje, já temos um robô que ‘mora’ no campo, faz o papel de sentinela da lavoura, realizando a identificação de ervas daninhas e aplicação de herbicida somente nessas plantas-alvo de forma automática”, detalha Henrique Nomura, diretor de tecnologia na Solinftec.
Cada robô consegue monitorar até 200 hectares, passando pelo mesmo local a cada sete dias. A redução no uso de herbicidas, com os 50 robôs que estão em funcionamento no Brasil e no mundo, foi da ordem de 90%. Além disso, um efeito indireto da aplicação direcionada a ervas daninhas é que com menos herbicida, a soja tem uma resposta produtiva melhor, por não ter contato com os produtos químicos. “Conseguimos resultados de incremento de até 10 sacas de soja por hectare na média de produção, com o uso da nossa tecnologia”, celebra Nomura.
Depois da colheita
A Inteligência Artificial também já chegou às etapas posteriores à lavoura. A Tbit – empresa sediada em Lavras, Minas Gerais, que atua há mais de 15 anos no setor – desenvolveu um sistema que faz a classificação de grãos de soja de forma automatizada, praticamente em tempo real. Batizado de Soy GroundEye, o conjunto é capaz de analisar os grãos de forma técnica, emitindo um laudo detalhado em menos de dois minutos.
Funciona assim: uma amostra de grãos é colocada em um compartimento da máquina. O sistema, então, faz uma “leitura” em 360º das características dos grãos, analisando a qualidade de cada um, a partir da IA. Se o laudo apontar, por exemplo, que 2% da amostra corresponde a ardidos, a máquina identifica esses grãos. O equipamento faz, em média, 250 análises por dia. “É possível ver os defeitos de cada um, inclusive localizá-los na bandeja. Se tiver dúvida, dá para abrir o compartimento e pegar o grão em questão, para avaliar manualmente”, diz Igor Chaulfoun, CEO da Tbit.
O desenvolvimento do sistema levou mais de seis anos, sendo dois só para treinar” o algoritmo. Para isso, a empresa fechou parceria com uma trader para utilizar os bancos de dados de imagens de soja provenientes de todas as regiões do Brasil. Foram utilizadas cerca de 3 milhões de imagens de grãos, que ajudaram a máquina a entender os padrões, levando em conta os requisitos da Instrução Normativa (IN) 11/2007, do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), que estabelece os parâmetros para a classificação de oleaginosa.
O conjunto está operando de forma apenas experimental em algumas traders, já que a IN 11/2007 determina que a classificação de grãos seja feita por uma pessoa. Essa realidade, no entanto, deve ser revertida em breve. O setor produtivo e as empresas que processam e exportam soja têm interesse na digitalização do processo. A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), por exemplo, já se posicionou favoravelmente à regulamentação das tecnologias fundamentadas em IA e aos testes com sistemas-piloto.
Projeção de rebanhos
A IA também tem tido usos na pecuária. A Associação Paranaense dos Criadores de Bovinos da Raça Holandesa (APCBRH), em parceria com a GenMate, por exemplo, disponibiliza o serviço Smartgen$$. Com a ferramenta, os bovinocultores de leite conseguem prever os acasalamentos e antecipar os resultados genéticos do rebanho usando IA. Essa predição é realizada a partir de informações do pedigree (pai, avô materno e bisavô materno), sem a necessidade de coleta de material genético ou usando dados prévios da genotipagem.
“A predição do melhoramento genético é uma ferramenta moderna, eficiente e ágil que ajuda produtores e técnicos a tomarem decisões quanto à seleção de animais para fazer genotipagem, se é favorável usar sêmen sexado, touros de corte e/ou descarte voluntário. Além disso, o serviço traz a possibilidade da predição de animais que ainda irão nascer e a redução de até 80% dos custos, quando comparado com a genotipagem tradicional”, enumera o superintendente da APCBRH, Altair Antonio Valloto.
Segundo o gerente operacional da GenMate, Fernando Jean Dijkinga, o novo serviço usa dados robustos e com isenção de viés, pensando no que realmente é melhor para cada produtor. “Com a Inteligência Artificial, é possível direcionar uma estratégia de mais saúde, conformação, ranking de animais, fazer acasalamento com empresas específicas, touros de associados, uma série de benefícios e com um alto índice de assertividade. É a mesma estrutura que se usa para carros autônomos e também no ChatGPT, mas nós usamos com dados de pedigree e valores genéticos”, resume.
Nova era
Segundo Assunção, do Sistema FAEP/SENAR-PR, esses exemplos representam uma nova fase na revolução digital no campo. Por isso, a entidade tem apostado na difusão desses conceitos entre os produtores, trabalhadores rurais e estudantes, que futuramente estarão prestando serviços de assistência técnicas dentro da propriedade.
“Nos colégios agrícolas, ofertamos um módulo de Agricultura de Precisão, dentro do Programa Agropecuária 2030. Os instrutores já trabalham todas as possibilidades da IA. O aluno não precisa saber fazer um tratamento de imagens, mas sabe que tem plataformas que fazem isso, em tempo real”, aponta Assunção. “Nos cursos do Sistema FAEP/SENAR-PR também temos um módulo de Agricultura de Precisão”, reforça.
Projetos envolvendo IA avançam no Paraná
Apesar de a Inteligência Artificial estar em evidência com novos lançamentos de produtos e serviços, sua história já tem décadas, com o primeiro modelo computacional para redes neurais tendo surgido em 1943. Já o termo “Inteligência Artificial” foi usado pela primeira vez em 1956, por John McCarthy. Apesar disso, a IA ganhou maior relevância nos últimos anos, com a evolução da tecnologia e os grandes volumes de informação a serem processados. Isso vem conquistando espaço no Paraná.
Entre as iniciativas da aplicação de IA no agro do Paraná, desde 2020, está em funcionamento o Centro de Inteligência Artificial no Agro (CIA Agro), com sede em Londrina, reunindo profissionais da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná (IDR-Paraná), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Fundação ABC, da qual o Sistema FAEP/SENAR-PR é um dos apoiadores.
“O interesse em se aplicar técnicas de inteligências artificiais no agronegócio vem em uma caminhada consistente, sobretudo no nosso Estado, que é um case nessa área. Então, a nossa ideia foi juntar a potencialidade enorme de produção agropecuária e aplicar novas tecnologias, incluindo a Inteligência Artificial, para propor soluções”, explica Daniel dos Santos Kaster, da área de Ciência da Computação e um dos coordenadores do CIA Agro, na frente de tecnologia.
O grupo de pesquisa trabalha com bolsistas e, atualmente, conta com oito projetos em andamento, com subprojetos desde os níveis de iniciação científica até estudos de pós-graduação.
Formatamos o CIA Agro com uma característica própria desses projetos, que necessitam de múltiplas áreas de conhecimento envolvidas
Marcelo Giovanetti Canteri, coordenador do CIA Agro na área de agronomia.
Um dos projetos em andamento envolve a Rede Complexo de Enfezamento do Milho (Rede CEM), integrante da Rede Paranaense de Agropesquisa, que tem o Sistema FAEP/SENAR-PR como apoiador. “Queremos aproveitar essa geração de dados da Rede, porque a Inteligência Artificial depende disso para atingir resultados. Como esse estudo envolvendo a cigarrinha tem uma coleta de dados robusta, estamos entrando nessa parceria para trabalhar melhor essas informações e investir em possíveis soluções ao problema”, explica Canteri.
Outra frente de agropesquisa que também tem contribuição de estudos do CIA Agro envolve o monitoramento de esporos do fungo (Phakopsora pachyrhizi), que causa a doença ferrugem asiática na soja. Um protótipo que usa Inteligência Artificial analisa as lâminas dos coletores de esporos espalhados pelo Paraná e, além de agilizar o trabalho, também promove maior assertividade. “A IA libera o tempo dos pesquisadores para, em vez de fazer digitação de dados, focarem em outra atividade. Não é substituir o ser humano, mas liberar a mão de obra humana de tarefas maçantes”, aponta Canteri.
Academia oferece cursos de graduação e pós-graduação
Para auxiliar no upgrade de profissionais que querem adentrar no mundo da IA, as universidades têm corrido para oferecer formações na área. Neste ano, a UEL abriu o curso de graduação “Ciência de Dados e Inteligência Artificial”, cujas aulas começam no segundo semestre. A ideia é fomentar a formação de recursos humanos com capacidade para extrair informações relevantes de grandes volumes de dados, fazendo uso intensivo de técnicas avançadas de computação para coleta, integração, preparação e análise de dados, concepção e modelagem de soluções, entre outros temas.
Em Curitiba, a PUCPR já está na segunda turma da pós-graduação “Agricultura Digital: Inteligência Artificial e Big Data aplicada no Campo”. “Temos percebido uma demanda muito grande nessa área. A Agricultura de Precisão, com o uso da Inteligência Artificial, Big Data, e internet das coisas, evita aquela situação na qual muitos produtores acabam caindo: fazer tudo certo na hora errada”, sinaliza Pablo Georgio de Souza, coordenador do curso.
Para o professor, antes da Inteligência Artificial se aprendia muita coisa com base no que aconteceu. Muitas vezes, no entanto, uma resposta de planejamento só era possível na próxima safra.
O grande diferencial da agricultura digital que usa a Inteligência Artificial é aprimorar o processo constantemente, por meio da análise de dados de cada processo, de cada sistema produtivo, sendo mais assertivo enquanto as coisas estão acontecendo
Pablo Georgio de Souza, coordenador do curso “Agricultura Digital: Inteligência Artificial e Big Data aplicada no Campo”
Nesse sentido, a revolução digital só não tem sido maior por conta de um entrave: a dificuldade de consolidar dados para fortalecer os modelos matemáticos. “A IA evoluiu a tal ponto que temos algoritmos capazes de resolver quaisquer problemas, desde que tenhamos dados para treiná-los. O desafio é formar esses bancos de dados. Não basta ter imagens. Precisa que essas imagens sejam anotadas, incluídas com informações que possam treinar o modelo matemático”, diz Jayme Garcia Arnal Barbedo, do Grupo de Pesquisa em Computação Científica, Engenharia da Informação e Automação, da Embrapa.
Na avaliação do especialista, para que a IA decole no setor agropecuário é preciso que haja um esforço colaborativo entre entidades e o setor produtivo, não só para trocar informações, mas, principalmente, para coletar e sistematizar os dados que possibilitem o treinamento das redes de IA.
(Assessoria Faep)