Foto: Gilson Abreu/AEN
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Iguaria paranaense, barreado impulsiona o turismo e a economia regional

Iguaria paranaense, barreado impulsiona o turismo e a economia regional
Tatiane Bertolino
Tatiane Bertolino

A imponência da Serra do Mar, a arquitetura portuguesa característica das construções históricas e a exuberância dos rios e da flora da Mata Atlântica são o pano de fundo para milhares de turistas que visitam diariamente as cidades de Morretes, Antonina e Paranaguá em busca do prato mais famoso da região e do Paraná: o barreado. Um grupo de restaurantes do Litoral paranaense segue praticamente a mesma receita há mais de 200 anos, o que rendeu a eles o selo de Indicação Geográfica (IG).

O processo para obtenção da IG foi iniciado em 2014 e concluído em 2022, quando o barreado tornou-se o 100º produto brasileiro com o reconhecimento nacional concedido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Em nível estadual, o prato é o mais recente de um grupo de 12 produtos tradicionais paranaenses com Indicação Geográfica.

O selo é uma garantia dos padrões de preparo e de qualidade concedida a produtos típicos de determinada região. No caso do barreado, ele foi concedido à Associação de Restaurantes e Similares de Morretes e Região (A.R.M.S), que engloba 11 restaurantes de Morretes, Antonina e Paranaguá. O pedido de registro recebeu o apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Paraná (Sebrae PR) e foi protocolado em de abril de 2021, mas o processo para conseguir o reconhecimento é bem mais antigo.

“Somos um grupo de restaurantes que está junto desde 2004 trabalhando em todo o processo de IG, desde a regulamentação inicial até mudanças no estatuto da Associação Comercial para abranger os restaurantes de Antonina e Paranaguá, o que nos uniu muito”, conta a presidente da A.R.M.S, Tania Madalozo, que também é proprietária de um dos mais antigos restaurantes especializados em Morretes. “Com a indicação geográfica e de procedência, o barreado ficou delimitado como um produto do Litoral do Paraná, abrangendo Morretes, Antonina e Paranaguá”.

Servido anteriormente em grandes festas e eventos, o barreado começou a ter um cunho mais comercial na década de 1970, quando o Restaurante Madalozo, de Tania, incluiu o prato em seu cardápio aos finais de semana, o que logo foi seguido por outros estabelecimentos da cidade. Não demorou muito para que ele se tornasse o principal atrativo do Morretes. Atualmente, a estimativa é de que apenas os 11 estabelecimentos associados sirvam entre 2,5 mil a 3 mil pratos de barreado por fim de semana, seguindo o modo de preparo típico que marca a cultura litorânea.

Uma das grandes preocupações da Associação era preservar a receita original, assim como o modo de fazer e o modo de servir, deixando um legado para as futuras gerações. “Todos os restaurantes envolvidos elaboraram juntos o regulamento, em que consta o controle do preparo, tempo de cozimento, horário de abertura das panelas, os temperos usados, a maneira de preparar, de servir e a apresentação dos pratos, que são os mesmos em todos os locais”, disse. “O barreado é um prato teoricamente simples, mas exige uma atenção especial em todo esse processo, se você não segue ele alguma coisa vai ficar diferente”, acrescentou Tania.

IDENTIDADE REGIONAL

O preparo tradicional do barreado surgiu a partir de uma receita culinária originária da região dos Açores, em Portugal, e que foi adaptada à realidade do Litoral paranaense, com o uso de alimentos e temperos típicos da região. Tradicionalmente, ele era preparado como um prato festivo, servido em casamentos, batizados e aniversários, além de festas da comunidade e religiosas, de acordo com a documentação enviada ao Instituto. Era feito também nos mutirões de colheita das comunidades litorâneas.

O prato é feito à base de carne bovina, que é cozida por no mínimo oito horas em uma panela fechada com goma de farinha de mandioca. Após o cozimento, ela é servida já se desmanchando misturada com farinha de mandioca branca na forma de pirão, e servida com banana-da-terra, segundo a documentação apresentada ao INPI. Tanto a farinha de mandioca quanto a banana que acompanham o prato são oriundos de produtores agrícolas da região.

Para Tania, o registro valoriza ainda mais a receita, que é a cara da culinária paranaense. “O barreado é conhecido no Brasil e até fora do País como o principal prato típico do Paraná. Nós já temos o reconhecimento do público, mas essa certificação dá ainda mais visibilidade aos restaurantes. É a valorização de um prato, que por seu preparo e qualidade, é característico do Litoral do Paraná”, ressalta.

Com o passar do tempo, jornalistas e artistas ajudaram a disseminar a fama do barreado em nível nacional e até mesmo internacional. “Artistas renomados de outros estados, que se apresentavam no Teatro Guaíra, em Curitiba, como o Lulu Santos, Marcos Frota, Eva Wilma e Carlos Zara, ou até mesmo estrangeiros, como o Anthony Quinn, vinham até o Litoral para saborear o barreado”, conta a presidente da A.R.M.S.

TRADIÇÃO

Há quase 30 anos no ramo, a chef de cozinha Silvia Cardoso conta que chega a servir de 500 a 600 almoços em apenas um final de semana mais movimentado. As enormes panelas da cozinha onde a carne é cozida rendem 125 conchas de barreado cada, com uma proporção exata de cada ingrediente. “Sexta-feira a gente coloca de cinco a seis panelões para o preparo do fim de semana. Em cada panela, vão 50 quilos de carne, 20 quilos de cebola, 700 gramas de sal, 300 gramas de cominho e 200 gramas de louro”, relata Silvia.

Com o passar dos anos e novas exigências impostas pela Vigilância Sanitária, algumas mudanças foram necessárias. A principal delas foi a troca das antigas panelas de barro, que eram cobertas com folha de bananeira e seladas por uma mistura de barro com cinzas – daí o termo ‘barrear’ – por panelas mais modernas, de ferro.

Para substituir a mistura de barro e cinzas, uma goma feita à base de mandioca, água e farinha de trigo é usada como selante das panelas, o que as faz funcionar como uma panela de pressão. Quando a carne ferve, a massa de mandioca racha para liberar a pressão, similar ao que ocorre com a válvula da panela de pressão, e a partir desse momento é que começa a contagem do cozimento.

Além de manter o método similar ao empregado há mais de duas centenas de anos, o uso da goma de mandioca dá ao barreado o seu sabor característico “É uma adaptação para garantir o sabor original, em substituição ao barro e à cinza que eram usados no passado. O chamado ‘barrear’ a panela”, diz a chef de cozinha.

Silvia conta ainda que o barreado, somado ao contexto de onde ele está inserido, faz com que muitos consumidores criem um vínculo afetivo com o prato. “A receptividade é muito boa. Tem pessoas que vinham aqui quando crianças acompanhadas dos pais e até hoje são clientes assíduo”.

Para o garçom Alaércio Fernandes de Campos, de 32 anos, que trabalho no ramo há mais de uma década, ter contato direto com turistas de vários lugares do Brasil e do mundo é uma experiência de vida. “Eu sou aqui do Litoral e ter esse contato com tantas pessoas diferentes acrescenta muito no aspecto profissional e é algo que eu levo para a vida. O Barreado é um motivo de orgulho para o nosso povo, uma cultura impregnada que passa de geração em geração, e esse reconhecimento da IG nos traz uma sensação de pertencimento, de fazer parte dessa história”.

CADEIA ECONÔMICA

Com nove dos 11 restaurantes certificados com a IG no Litoral do Estado, a cidade de Morretes concentra o maior fluxo de turistas em períodos comuns. A grande demanda garante o sustento de centenas de famílias. Na cidade, a estimativa é de que 48% da população dependa direta ou indiretamente do dinheiro gerado a partir do turismo.

Apenas no restaurante onde Silvia trabalha são cerca de 40 funcionários entre cozinheiros, garçons, recepcionistas e equipe de limpeza. “Trabalhamos de quarta a domingo e, na alta temporada, de terça a domingo, além de feriados. Chegamos às 8h30 para começar o preparo e às 11h as panelas já precisam estar fervendo para recepcionar os clientes”, afirma.

Um destes exemplos é o gerente comercial curitibano Antônio Fernando da Cruz, de 61 anos, que costuma frequentar os restaurantes de Morretes para almoçar até mesmo nos dias de semana. “O barreado é um prato tradicional e, como é perto de Curitiba, a gente vem seguidamente apreciar. Nos fins de semana e feriados aproveitamos para passear na cidade, ver o centro histórico e a feirinha e depois seguimos para as praias”, conta.

De acordo com estimativas da Prefeitura de Morretes, cerca de 3 mil turistas, em média, viajam para Morretes e Antonina a partir de Curitiba no trem turístico que desce a Serra do Mar todos os finais de semana. “O passeio de trem em si já é um atrativo, que termina sempre com a ida aos restaurantes para saborear o barreado. Além disso, temos o fluxo das pessoas que vêm de carro ou moto pela Estrada da Graciosa ou pela BR-277”, diz o prefeito de Morretes, Junior Brindarolli.

Ele afirma que várias famílias dependem direta ou indiretamente do impacto econômico causado pelo grande fluxo de turistas até mesmo durante os dias úteis. “Além dos restaurantes abertos praticamente todos os dias, temos várias bancas e lojas na região central e nas vias de acesso à cidade que vendem doces, bebidas, conservas, acessórios e artesanatos produzidos aqui na região, além de serviços ligados às atrações naturais e passeios que podem ser feitos no Litoral”.

A atração culinária ajuda a manter a alta ocupação de hotéis e pousadas nas três cidades litorâneas, que diferente das demais da região não possuem as praias como principal atrativo para os turistas. Apesar disso, os municípios têm trabalhado em parceria com a iniciativa privada para atrair outros perfis de público, utilizando-se sempre do barreado como um diferencial.

“Essa Indicação Geográfica é uma espécie de chancela do que nós temos de melhor, que é a gastronomia, e que ajuda Morretes e o Litoral do Paraná a se tornarem cada vez mais conhecidos. Cada vez mais a nossa região é conhecida pelo barreado e, com a IG, isso vira um patrimônio de toda a população e exige uma responsabilidade ainda maior dos envolvidos, porque movimenta toda uma cadeia econômica e os trabalhadores estão sempre preparados e dispostos a receber o turista da melhor maneira possível”, acrescenta o prefeito.

A estratégia envolve a manutenção de festas tradicionais, como é o caso do famoso Carnaval de Antonina e da Feira Agrícola e Artesanal de Morretes, mas também de novos eventos que têm atraído a atenção para a região, como festivais musicais de blues e jazz, festas litetárias e encontros de montanhistas.

OUTROS PRODUTOS DO LITORAL 

A partir do prato principal, a bala de banana de Antonina também já possui selo do INPI. Também é vendida no comércio de Morretes, ela gerou uma identificação com a população local e incentivou a criação de novos negócios. E outros produtos típicos do Litoral paranaense também buscam o reconhecimento nacional.

A farinha de mandioca utilizada no barreado, produzida por agricultores familiares e cujo uso é indispensável na receita do barreado, fortalece o seu vínculo com a identidade regional. A característica única do produto é atribuída ao processo de produção, cuja técnica existe desde a época pré-colonial, surgida com os tupis-guaranis, que foi posteriormente copiada e aprimorada pelos colonizadores europeus com o uso de equipamentos modernos. Muitos deles utilizados nas primeiras farinheiras, que datam de séculos, constituem elementos identitários da cultura litorânea.

A cachaça de Morretes é outro produto que busca a IG. Na cidade, está localizado o segundo alambique mais antigo registrado no Brasil, de 1733, às margens do Rio Nhundiaquara. Já nos tempos do Brasil Império, a cachaça era tão famosa que os registros apontam que Dom Pedro II em sua passagem pela região visitou um ponto de produção para fazer a degustação do produto.

Em 2019, a bebida foi referendada no Anuário da Cachaça pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, colocando Morretes como uma das cidades mais importantes na produção de cachaça.

“São vários alambiques hoje, uma cachaça que já é reconhecida pela sua qualidade e que também está buscando o seu certificado de indicação geográfica porque é um patrimônio do povo morretense, algo histórico, e nada mais do que chancelar isso com um título de IG da cachaça”, afirma o prefeito.

Confira o vídeo desta reportagem AQUI.

Com AEN

(Tatiane Bertolino/Sou Agro)